Por uma Política do Tempo

Texto em PDF                                                                                                            Alan Boccato Franco
“É preciso haver uma política do tempo que inclua a reorganização do ambiente de vida, a política cultural, a formação e a educação, e que refunde os serviços sociais e os equipamentos coletivos de tal modo que neles haja mais espaço para as atividades autogeridas, de ajuda mútua, de cooperação e de autoprodução voluntárias” (André Gorz) 

O dia tem 24 horas. Uma noite de sono bem dormida gira em torno de 8 horas. Nos restam então 16 horas acordados. Destas, nos dias úteis, 8 horas (em média) são dedicadas ao trabalho. Vamos considerar que gastamos 30 minutos para ir de casa ao trabalho e vice-versa (isso numa perspectiva de classe média que tem seu veículo individual). Somam-se mais 2 horas de almoço, que tem estreita relação com as horas do trabalho, pois o que se faz nesse espaço de tempo é limitado e determinado pela necessidade de se voltar ao trabalho. Assim totalizam 11 horas que chamarei de tempo do trabalho.

Subtraindo das 16 horas que temos acordados as 11 dedicadas ao tempo do trabalho, ainda restam 5 horas para tudo o que mais tivermos para fazer. Este tempo não pode ser considerado como tempo livre, pois parte dele é comprometido, segundo o economista Marcio Pochmann, “com o exercício burocrático do atendimento da sobrevivência própria e da família”, ou seja, na ida ao supermercado, no pagamento de contas, no levar e buscar os filhos na escola e no acompanhamento da sua lição de casa, entre outras atividades que não representam tempo livre de fato. Estes são exemplos de tempo de não-trabalho.

Quantas horas nos restam então para exercer o tempo livre nas atividades artísticas ou artesanais, o tempo para a brincadeira, a contemplação, a meditação, a conversação, ou até, simplesmente, o tempo para sentir a alegria de estar vivo e descansar? E para nos dedicar ao prazer das atividades comunitárias e de cumprir o dever de cidadão, como por exemplo, participar de audiências e consultas públicas, dos conselhos municipais, das conferências, acompanhar seções da câmara dos vereadores, fiscalizar a execução de uma obra pública, elaborar um projeto de lei de iniciativa popular, ler os programas de governo em disputa nas eleições, etc?

Uma coisa é clara: o tempo de trabalho é o que determina a quantidade de horas que podem ser destinadas ao tempo livre. Mas estamos satisfeitos com essa distribuição do tempo? Temos liberdade para decidir como distribuir nosso tempo? Ou melhor, tivemos a oportunidades para decidir como a sociedade deve distribuir o seu tempo?

Hoje temos uma carga horária máxima de 8 horas diárias e uma jornada que varia entre 36 e 44 horas semanais por conta de sucessivas decisões políticas ao longo da história brasileira que se traduziram em leis. Portanto, o tempo de trabalho é uma questão política. E para que possamos reorganizar nosso tempo, temos necessariamente de incluír na agenda política uma Política do Tempo.


O TEMPO DE TRABALHO

Um dos programas eleitorais sugeridos pelo professor de economia Serge Latouche é: transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos, enquanto persistir o desemprego.

Segundo esse autor, na França em mais ou menos dois séculos, a produtividade por hora de trabalho foi multiplicada por 30, a duração individual do trabalho foi dividida apenas por 2 e o emprego só foi multiplicado por 1,75, enquanto a produção se viu multiplicada por 26 (não tenho os dados do Brasil, mas podemos considerar uma tendencia semelhante, variando talvez em números absolutos). Assim o autor sugere que é preciso dividir o trabalho e aumentar o lazer.

Pochmann afirma que “em 2002, no Brasil, tinhamos 8 milhões de desempregados e 31 milhões com jornada de trabalho acima das 44 horas. O Avanço das horas extras representa um desperdício de 7 milhões de postos de trabalho. Ainda mais, 3.2 milhões possuem duplo ou triplo trabalho, enquanto 6 milhões de aposentados e pensionistas continuam trabalhando.”

Segundo esse mesmo autor, no mundo ganha cada vez mais importância a possibilidade efetiva de jornadas semanais de trabalho de 25 horas em 200 dias de trabalho por ano , totalizando cerca de mil horas de trabalha ao ano. Hoje, a Holanda possui uma jornada média anual de menos de 1,4 mil horas.

Indo ainda mais longe, considerando os grandes ganhos de produtividade, Pochmann afirma que “o ingresso na vida laboral deveria ser postergado para além dos 25 anos e a jornada semanal chegar a 12 horas”, o que segundo esse autor já é tecnicamente possível.

Necessitamos repensar o trabalho nas perspectivas sugeridas por Pochmann:
  • como condição comum a todos;
  • como capacidade de transformar o homem e a natureza, associada ao desenvolvimento humano;
  • romper com o sentido do trabalho como condenação;
  • geração de novas oportunidades de trabalho, não mais como uma obrigação e sim como consequência direta de decisões tomadas previamente;
A diminuição do tempo de trabalho irá gerar um aumento do número dos postos de trabalho. Parte destes postos de trabalho poderão ser preenchidos pelo grande contingente de desempregagos que temos no Brasil. A ocupação da outra parte dos postos de trabalho deverão ser considerados dentro do contexto da sustentabilidade socioambiental que exigirá que alguns setores produtivos reduzam, ou em alguns casos, cessem suas atividades. Um dos setores que deverão ter suas atividades drasticamente reduzidas é o de “consumos intermediários”, como por exemplo, o transporte, embalagens, energia, publicidade.

Dessa forma, a redução do tempo de trabalho criará novos postos de trabalho numa mesma atividade, como também diminuirá o seu número em outras atividades. Para a neutralização do impacto dessa última redução de postos de trabalho, a prerrogativa da sustentabilidade socioambiental é uma oportunidade na geração de novos tipos de trabalhos, como por exemplo, a ampliação da agriculra familiar orgânica, as pequenas e médias centrais de geração de energia eólica, solar e de biomassa, a cadeia produtiva do reflorestamento, ou como aponta Latouche, “as reduções, a reutilização, o conserto e a reciclagem ligadas ao necessário abandono da absolescencia programada”, e nos diversos outros empregos verdes que surgirão em novos setores de atividade. Portanto, haverá um repensar de quantidade e de qualidade de trabalho.

Mas, quanto tempo de trabalho é desejável e quanto é necessário? Quanto tempo de trabalho é possível no curto, no médio e no longo prazo? Essas são questões que a sociedade brasileira tem de ser capaz de discutir e de responder.


O TEMPO LIVRE

Uma questão fundamental que não pode estar descolada do debate a respeito da reduão do tempo de trabalho e que a sociedade brasileira deverá responder é: reduzir o tempo de trabalho para fazer o que no tempo livre?

Na nossa sociedade, principalmente nos centros urbanos, a noção de liberdade está fortemente ligada à “liberdade” de consumo, ao “livre” mercado. O teórico político Benjamin Barber considera que o significado da liberdade é ambíguo “numa época em que comprar parece ter-se tornado um sinalizador mais persuasivo da liberdade do que votar, e aquilo que fazemos nos shopping é considerado mais importante para moldar nosso destino do que o que fazemos juntos na esfera pública”. Além disso, segundo o mesmo autor, há na sociedade do consumo “a preferência pelo simples, pelo fácil e pelo rápido, levando as pessoas a se prender mais rapidamente a comportamentos solitários e comuns, como comprar, do que aos comportamentos de deliberar juntos antes de agir juntos”.

Uma característica das sociedades capitalistas de “livre” iniciativa é a transformação de praticamente todas as dimensões e necessidades humanas em mercadorias: lazer, cultura, esporte, brincadeira, jogo, passeios, etc. Atrelado a isto, há uma forte valorização do indivíduo (status quo) baseado no que ele tem e na quantidade de bens e serviços que ele pode consumir em detrimento ao que ele é.

Portanto a noção de “livre” e “liberdade” devem ser amplamente contextualizadas e debatidas pela sociedade brasileira, de modo que o tempo livre não seja tomado de assalto pelo tempo para o consumo.

Este debate é essencial, pois se permanecer a noção (e a ação) de que relaxar, passear, se divertir são sinônimos de comprar, e como para comprar necessitamos de dinheiro que vem do trabalho, entramos num beco sem saída que inviabiliza o projeto de uma possível redução do tempo de trabalho. Além disso, o contexto da necessidade da sustentabilidade ambiental tem implicações diretas sobre a quantidade e a qualidade do consumo humano, pois a manutenção e o aumento do consumo é a atividade humana que mais impactos ambientais gera no Brasil e no planeta.

Outra questão fundamental relacionada ao tempo livre e a noção de liberdade é que somente com o aumento do tempo livre é que poderemos efetivamente consolidar a democracia no Brasil. Não há a possibilidade da democracia participativa e até mesmo do aperfeiçoamento da democracia representativa, se o cidadão não tiver tempo para participar da vida política do seu condomínio, bairro, escola, município, estado e país, se informando, analisando e elaborando propostas, fiscalizando, etc.

Por fim, com o tempo livre ampliado poderá ocorrer uma explosão de criações artisticas, culturas e de inventividade, pois o brasileiro poderá colocar em prática com mais tempo sua incrível criatividade e genialidade seja na música, na poesia, nas artes plásticas, na danças, nos esportes, e até mesmo, no desenvolvimento de invenções que solucionem diversas dificuldades que enfrentamos cotidianamente.


PROPOSTA POLÍTICA

Contudo, atualmente o contexto ideológico, tributário, de qualificação de mão-de-obra, etc passam a ser uma dificuldade a ser enfrentada para essa proposta de emancipação civilizatória brasileira.

Por isso, a redução do tempo de trabalho e a re-avaliação do que se faz com o tempo livre devem ser, antes de mais nada, uma escolha da sociedade brasileira. Uma vez decidido coletivamente o seu projeto presente e futuro sobre a distribuição do seu tempo de trabalho e do seu tempo livre, caberá aos diversos profissionais de economia, tecnologia, cultura, administração, ciencias sociais, psicologia, educação, etc direcionar suas capacidades criativas para apresentar o caminho para se implementar esse projeto.

Por isso penso que a(o) próxima(o) Presidente da República deve institucionalizar no âmbito do Estado Brasileiro um amplo debate sobre o tema, envolvendo os diversos setores da sociedade e das diversas classes sociais.

Seremos capazes de construir um programa político sobre esse tema? Quais são as bases que devemos consolidar para num futuro, não muito distante, consiguirmos concretizar isso? Qual a agenda para entrarmos numa transição para esse novo modelo? Em quanto tempo conseguiremos implementar as mudanças necessárias para abandonarmos definitivamente a sociedade trabalhista e ingressarmos na sociedade da liberdade do trabalho? Dez, quinze, vinte, trinta anos?

Seja qual for o tempo necessário, temos que pelo menos definir isso como uma meta e começar a transição agora. E o começo se dará quanto a sociedade passar a discutir isso ampla e abertamente, de forma livre, mas também institucionalizada.

Neste ano de 2010 teremos eleições para presidente. Haverá espaço nos programas políticos de cada um dos(as) candidatos(as) para uma proposta como esta? Quais deles(as) assumirão este desafio?

Se você concorda com esta proposta, fique a vontade para se apropriar dela e pautar isto nos programas de governo que estão sendo elaborados. Ou pelo menos, cultive esta idéia com os outros.

Referencias Bibliográficas:
Barber, Benjamim R. Consumido: Como o consumo comrrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. 2007
Latouche, Serge. Pequeno Tratado de Decrescimento Sereno. 2009
Pochmann, Marcio. Qual Desenvolvimento? Oportunidades e dificuldades do Brasil Contemporâneo. 2009

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