21 horas


Porque uma  semana de trabalho menor pode ajudar todos nós a prosperar no século XXI

O Decrescimento-Brasil apresenta a tradução para o português do documento “21 hours: Why a shorter working week can help us all to flourish in the 21st century” originalmente elaborado pela new economic foudation – nef. Objetivamos com isto tornar disponível aos brasileiros parte do debate contemporâneo sobre a redução da jornada de trabalho que tem ido para além das questões trabalhistas históricas. Novos elementos têm sido incorporados nesse debate colocando-se o tempo consumido pelo trabalho numa relação direta e causal da insustentabilidade socioambiental das sociedades humanas. Deste modo, para a construção de uma sociedade em que a sustentabilidade seja um princípio, a relação entre ser humano e trabalho deve ser transformada sendo a redução da jornada de trabalho um aspecto fundamental a ser considerado. 

Esta publicação considera que uma semana de trabalho "normal" de 21 horas poderá ajudar a resolver uma série de problemas urgentes e relacionados entre sí como: excesso de trabalho, desemprego, consumo excessivo, altas emissões de carbono na atmosfera, baixo bem-estar, desigualdades sociais, falta de tempo para viver de forma sustentável, para as pessoas cuidarem uma das outras ou simplesmente para desfrutar a vida.

Sumário Executivo
Este relatório apresenta os argumentos para uma semana de trabalho muito menor, propondo uma mudança radical no que é considerado “normal” – baixar das 40 horas semanais, ou mais, para 21 horas semanais. Embora as pessoas possam optar por trabalhar mais ou menos horas, propomos que uma semana de trabalho de 21 horas - ou o seu equivalente ao longo do ano - deve se tornar o padrão geralmente esperado pelo governo, empregadores, sindicatos, trabalhadores e todos os demais.

A visão
Avançar rumo a uma jornada de trabalho remunerado muito menor oferece uma nova rota de saída para múltiplas crises enfrentadas atualmente. Muitos de nós consumimos além de nossas capacidades econômicas e bem além dos limites do ambiente natural- e ainda assim não conseguimos melhorar o nosso bem-estar-, enquanto tantos outros sofrem com a pobreza e a fome. A continuação do crescimento econômico nos países ricos1 tornará impossível alcançar as urgentes metas de redução de emissão de carbono. As desigualdades crescentes, a economia global em declínio, o esgotamento crítico dos recursos naturais e a aceleração das mudanças climáticas representam sérias ameaças ao futuro da civilização humana. Uma semana de trabalho “normal” de 21 horas poderia ajudar a solucionar uma série de problemas urgentes e interligados, tais como: excesso de trabalho, desemprego, consumismo, elevadas emissões de carbono, bem-estar reduzido, desigualdades, falta de tempo para viver de forma sustentável e para cuidar de si e dos outros ou simplesmente para aproveitar a vida.

21 horas como a nova “norma”
Vinte e uma horas é uma cifra que está próxima da média do que as pessoas em idade ativa na Grã Bretanha passam no trabalho remunerado e um pouco mais do que a média gasta no trabalho não-remunerado. Experimentos com horas de trabalho reduzidas sugerem que as mesmas podem ser populares onde as condições são estáveis e os salários favoráveis, e que um novo padrão de 21 horas semanais poderia ser consistente com a dinâmica de uma economia de baixo carbono.
Não há nada de natural ou inevitável no que é considerado “normal” hoje em dia. O tempo, assim como o trabalho, têm se tornado mercadorias – um recente legado do capitalismo industrial. No entanto, essa lógica da era industrial está fora de sintonia com as condições atuais onde as comunicações instantâneas e as tecnologias móveis trazem novos riscos e pressões, bem como oportunidades. O desafio é quebrar o poder desse velho relógio industrial, sem adicionar novas pressões, e liberar tempo para que se possa viver de forma sustentável. Para enfrentar esse desafio, devemos mudar a nossa forma de valorar o trabalho remunerado e o não-remunerado. Por exemplo, se o tempo médio dedicado ao trabalho doméstico não-remunerado e ao o cuidado com as crianças na Grã Bretanha em 2005 fossem valorados com base no salário mínimo, os mesmos valeriam o equivalente a 21% do Produto Interno Bruto (PIB) do Reino Unido.

Planeta, pessoas e mercados: razões para mudar
Uma semana de trabalho mais curta alteraria o ritmo de nossas vidas, remodelaria os nossos hábitos e convenções e alteraria profundamente a cultura dominante da sociedade ocidental. Os argumentos para uma semana de 21 horas recaem em três categorias, como reflexo de três “economias” interdependentes ou fontes de riqueza, derivadas das fontes naturais do planeta, dos recursos humanos e dos relacionamentos inerentes ao cotidiano de todos e dos mercados. Nossos argumentos são baseados na premissa de que precisamos reconhecer e valorizar essas três economias e garantir que as mesmas trabalhem juntas para uma justiça social sustentável.

Proteger os recursos naturais do planeta. Avançar rumo a uma semana de trabalho mais curta ajudaria a quebrar o ciclo de viver para trabalhar, trabalhar para ganhar e ganhar para consumir. As pessoas poderiam tornar-se menos apegadas ao consumo intensivo em carbono e mais apegadas aos relacionamentos, aos hobbies e aos locais que absorvam menos dinheiro e mais tempo. Isso ajudaria a sociedade a sobreviver sem um crescimento baseado tão intensivamente no carbono, a liberar tempo para as pessoas viverem de forma mais sustentável e reduzirem a emissão de gases do efeito estufa.

Justiça social e bem-estar para todos. Uma semana de trabalho “normal” de 21 horas poderia ajudar a distribuir o trabalho remunerado de forma mais homogênea entre a população, reduzindo o mal estar associado ao desemprego, às longas jornadas de trabalho e à falta de controle sobre o tempo. Também tornaria possível que o trabalho remunerado e o não-remunerado fossem distribuídos de forma mais equilibrada entre homens e mulheres; que os pais e mães pudessem passar mais tempo com os seus filhos e que esse tempo fosse despendido de forma diferente; que a pessoas pudessem retardar a sua aposentadoria, se assim quisessem, e que se tivesse mais tempo para cuidar dos outros, para participar de atividades locais e para desenvolver outras atividades de sua escolha. De forma crucial, isso permitiria que uma “economia humana” (core economy) prosperasse graças a um melhor e maior uso dos recursos humanos não mercantilizados na definição e na materialização das necessidades individuais e coletivas. Seria uma forma de liberar tempo para as pessoas agirem como parceiras, em pé de igualdade, de profissionais e servidores públicos, na co-produção do bem-estar.

Uma economia próspera e robusta. Um número reduzido de horas de trabalho poderia ajudar a economia a adaptar-se às necessidades da sociedade e do meio ambiente, ao invés da sociedade e do meio ambiente se subjugarem às necessidades da economia. O mundo dos negócios se beneficiaria com a entrada de mais mulheres no mundo do trabalho; com o fato dos homens poderem levar vidas mais completas e equilibradas; e com a redução do estresse no ambiente de trabalho proveniente do malabarismo de conciliar trabalho remunerado com os afazeres do lar. Também poderia ajudar a pôr fim ao modelo de crescimento baseado no crédito, desenvolver uma economia mais elástica e adaptável, assim como salvaguardar recursos públicos para investimentos em uma estratégia industrial de baixo carbono e outras medidas de suporte para uma economia sustentável.

Problemas da transição
Obviamente, avançar da situação atual para esse cenário futuro não será uma tarefa simples. A mudança proposta para as 21 horas precisa ser vista em termos de uma ampla e gradual transição para a sustentabilidade social, econômica e ambiental. Entre os problemas que podem surgir no decorrer desta transição estão o risco do aumento da pobreza resultante da redução do poder aquisitivo daqueles com salários baixos; poucas novas vagas de emprego, já que as pessoas que já possuem emprego aceitariam fazer mais horas extras; uma resistência dos empregadores devido ao aumento dos custos e da falta de empregados qualificados; resistência dos trabalhadores e sindicatos devido ao impacto sobre os salários em todos os níveis de renda; e do surgimento de uma oposição política mais geral como, por exemplo, de movimentos para impor a redução de horas.

Condições necessárias para abordar os problemas da transição.
O nef (the new economics foundation) está iniciando o trabalho para desenvolver um novo modelo econômico que irá ajudar a projetar uma economia em “condição estável” (steady-state) e abordar os problemas da transição para 21 horas. Ainda há muito trabalho a ser feito e as sugestões contidas neste relatório são mais para estimular o debate e a reflexão do que para oferecer soluções definitivas. As sugestões centram- se em alcançar a redução de horas de trabalho, garantir uma renda justa para todos, melhorar as relações de gênero e a qualidade de vida da família e mudar normas e expectativas.

Alcançando a redução de horas de trabalho. As condições necessárias para a redução bem sucedida do número de horas de trabalho remunerado incluem: reduzir gradualmente o número de horas de trabalho ao longo dos anos em consonância com incrementos salariais anuais; alterar a forma como o trabalho é gerenciado de forma a desencorajar horas extras; capacitar profissionais para combater a falta de pessoal qualificado e para ajudar que os desempregados por muito tempo possam voltar a fazer parte do mercado de trabalho; gerenciar o custo dos empregadores de forma a recompensar ao invés de penalizar a contratação de pessoal extra; assegurar uma distribuição mais estável e igualitária da renda; introduzir normas para padronizar as horas de trabalho, mas que também sejam flexíveis para atender às necessidades dos trabalhadores tais como a partilha de trabalho e prolongamento das licenças maternidade e sabáticas; e oferecer uma maior e melhor proteção aos trabalhadores autônomos contra os efeitos da baixa remuneração, longas jornadas de trabalho e inseguridade.

Assegurar uma renda justa. Entre as opções para lidar com os impactos de uma semana de trabalho mais curta se incluem uma redistribuição de renda e riqueza através de uma taxação mais progressiva, aumento do salário mínimo, uma radical reestruturação dos benefícios do Estado, um mercado de carbono desenhado para redistribuir renda para as famílias pobres, serviços públicos mais amplos e melhores e incentivos às atividades e ao consumo não mercantilizáveis.

Melhorar as relações de gênero e a qualidade de vida da família. Medidas para assegurar que a mudança para 21 horas tenha um impacto positivo ao invés de negativo nas relações de gênero e na vida da família incluem: flexibilidade nas condições de trabalho que encorajem uma distribuição de trabalho não- remunerado de forma mais igualitária entre homens e mulheres; creches de alta qualidade e que atendam a todos nos seus horários de trabalho remunerado; mais divisão de trabalho e limites de horas extras; aposentadoria flexível; medidas mais firmes que imponham a igualdade salarial e de oportunidades; mais empregos para homens em creches e como professores em escolas do ensino fundamental; mais creches, tempo de lazer e serviços de cuidado de adultos usando modelos produzidos de forma conjunta no seu desenho e execução; e maiores oportunidades para ação local de modo que se possam construir bairros no qual todos se sintam seguros e felizes.

Mudança de normas e expectativas. Há muitos exemplos de normas sociais aparentemente intratáveis, mas que mudaram muito rapidamente – por exemplo, atitudes relacionadas ao tráfico de escravos, o voto feminino, a utilização do cinto de segurança e do capacete e a proibição de fumar em locais públicos. A opinião pública pode mudar rapidamente da aversão para a aprovação como resultado da exposição de novas evidências, fortes campanhas e mudanças de contextos, incluindo um senso de crise. Há alguns sinais de que condições favoráveis começam a emergir para uma mudança de expectativa sobre o que seria uma semana “normal” de trabalho. Outras mudanças que poderiam auxiliar incluem construir uma cultura mais igualitária, aumentar a consciência sobre o valor do trabalho não-remunerado, apoio do governo para atividades não mercantilizáveis e debates nacionais sobre como usamos, valorizamos e distribuímos nosso trabalho e nosso tempo.


Nós estamos no começo do debate nacional. O próximo passo é fazer um exame minucioso dos benefícios, desafios, barreiras e oportunidades associadas com a mudança para uma semana de 21 horas no primeiro trimestre do século vinte e um. Isto deveria ser parte da Grande Transição para um futuro sustentável.

2 comentários:

  1. Em termos de meio ambiente seria muito bom pois haveria uma redução muito grande de gás carbônico.
    Em termos de sociedade,ela precisa de muita educação para enfrentar um processo de transição difícil e totalmente novo.Mas seria muito bom se desse certo a redução de horas de trabalho.

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  2. A questão do decrescimento traz ao fundo uma boa oportunidade de reflexão sobre nossa sociedade, uma sociedade obcecada pela produção e pelo consumo. Ao longo da história, a sociedade capitalista já se confrontou com diversas sociedades não-capitalistas. Posso citar o exemplo dos indígenas que os colonizadores aqui encontraram quando chegaram ao novo mundo. Esses povos, que em sua maioria realizavam atividades produtivas voltadas à economia energética, não trabalhavam para produzir excedentes para vender. Eles não pensavam em produzir algo para reverter em dinheiro, pensavam em produzir o que fossem consumir ou, no máximo, trocar com os vizinhos. Um célebre antropólogo chamado Pierre Clastres* exemplificou bem este encontro entre a idéia de “produção de excedentes” dos colonizadores (visando a venda dos excedentes) e a “produção para o consumo” dos indígenas (visando a reposição energética do grupo). Segundo Clastres, após o contato com os indígenas os colonizadores logo observaram que os nativos ocupavam apenas 3 ou 4 horas por dia com o trabalho produtivo, dedicando o resto do dia com outras esferas da vida, como o lazer, as atividades religiosas e políticas, os cuidados com a família e com a vida em sociedade.
    Ansiosos por introduzir os indígenas no sistema de produção de excedentes, os colonizadores observaram, por exemplo, que os índios se utilizavam de rudimentares machados de pedra para derrubar árvores. Pensaram então que se equipassem os índios com machados de metal – muito mais eficientes que os de pedra – os indígenas seriam capazes de derrubar 10 vezes mais árvores com o mesmo tempo de trabalho, produzindo assim excedentes que poderiam ser comercializados com a Europa. No entanto, ao colocarem seus planos em prática, trazendo aos indígenas os machados de metal, os colonizadores amargaram uma triste surpresa: os índios, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados de metal, pensaram nestes produtos uma oportunidade não de derrubar mais árvores no mesmo tempo de trabalho, mas de derrubar a mesma quantidade de árvores gastando 10 vezes menos tempo! Ou seja, passaram a ocupar menos de 1 hora por dia com esta atividade, aumentando ainda mais seu tempo disponível para outras atividades.
    É claro que na prática esta invenção indígena não durou muito, pois os colonizadores os obrigaram a produzir excedentes à força, tornando evidente a lógica da dominação. Mas esta experiência deixa claro como uma sociedade não norteada pelo capitalismo racionaliza o trabalho. Afinal, não fazia sentido aos indígenas produzir mais do que iriam consumir (o que implica em sustentabilidade).
    Isto evidencia uma reflexão do trabalho como economia verdadeiramente, e não como meio de produção de excedentes para uma sociedade cuja economia se traduz por desperdício.
    Se temos em vista o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, auto-reflexiva e sustentável, é fundamental não pensarmos apenas em possibilidades, mas agregamos a esta discussão as experiências que a história nos traz, pois o decrescimento pode ajudar muito nisto sim, mas que venha aliado à construção de uma nova mentalidade, de uma nova cultura, em que o desperdício, o consumo desenfreado, sejam encarados moral e socialmente como danosos à sociedade e não como símbolos de sucesso e felicidade. A sustentabilidade precisa estar enraizada na cultura, pois envolve não apenas as práticas de produção e consumo, mas recai em cheio sobre o sistema de valores de nossa sociedade. Não haverá pensamento sustentável desligado das práticas religiosa, dos princípios morais, da noção de cidadania. Não haverá sustentabilidade desligada deste todo.

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