Os
movimentos nas ruas reavivaram o debate em torno da educação, saúde
e transporte, provocando proposições imediatas oriundas do Governo
Federal. Aproveitando esse momento histórico vamos apresentar
algumas das ideias de Ivan Illich que poderão contribuir no
entendimento de como abordar esses três direitos sociais de modo a
efetivamente democratizar os seus acessos.
Para
tanto, utilizaremos trechos da dissertação de mestrado "A
nebulosa do decrescimento: um estudo sobre as contradições das
novas formas de fazer política" elaborada por Ana Flavia Bádue.
Com a
palavra Badue (2013):
Ivan Illich,
contraprodutividade e monopólio radical
Ivan
Illich era católico e fez parte do clero. Na década de 1960, devido
às críticas que fazia à Igreja Católica acabou por desligar-se
dela. Essas críticas eram profundamente ligadas as suas teses sobre
subdesenvolvimento e sobre a desfuncionalidade da escola e de missões
religiosas (ILLICH, 1973a, 1973b). Nesse momento, sua obra se
separava em duas frentes que dialogavam: a primeira era mais voltada
a temas teológicos e religiosos e a segunda era "panfletária",
defendia a tese da contraprodutividade do desenvolvimento (ROBERT;
PAQUOT, 2010). Apesar de sua extensa trajetória (a partir de 1980,
Illich adentra um período de reflexões sobre o poder e a função
simbólica de instrumentos conceituais e sobre a relação entre
oralidade e escrita), a fama de Illich pelo mundo fez-se, segundo
Robert e Borremans (2006) por seus escritos panfletários, que hoje
são referência para o decrescimento.
Tais
escritos abordam diversos temas como educação, saúde e energia,
todas atravessadas por um mesmo processo: a contraprodutividade e o
monopólio radical. Nas sociedades industrializadas (capitalistas e
socialistas), os meios se converteram em fins, gerando o fenômeno da
contraprodutividade, defendia Illich. A contraprodutividade
designa o modo como o desenvolvimento e o progresso carregam em si
sua destruição; tanto biofísica, quanto social e também política
(contraprodutividade das ferramentas, instituições e da sociedade
industrial). Illich verificava isso nos transportes, na educação
e na saúde – três temas importantes para a análise já que,
segundo o autor, são os elementos do desenvolvimento e da
modernidade por excelência.
Segundo
o comentário de Boaventura de Sousa Santos (1975) sobre o panfleto
“Energia e Equidade”, Illich buscava provar a lei hegeliana da
transformação da quantidade em qualidade. Veja-se o caso do consumo
de energia: ultrapassando-se determinado limite, há um "efeito
corruptor do poder mecânico" (ILLICH, 1975, p. 27), qual seja a
transformação desse poder mecânico em necessidade, e a necessidade
converte-se em um monopólio:
Tal monopólio institui-se quando a sociedade se adapta aos fins
daqueles que consomem o total maior de quanta de energia, e
enraíza-se irreversivelmente quando começa a impor a todos a
obrigação de consumir o quantum mínimo sem o qual a máquina não
pode funcionar. ILLICH, 1975, p. 60.
Quando
tudo é reorganizado em torno dos meios de transporte motorizados,
não resta espaço para outra forma de transitar (por exemplo, as
bicicletas), e as pessoas veem-se obrigadas a se transportarem por
meio de um produto industrial. Isso significa que o produto
industrial converte-se em necessidade – a necessidade de
locomoção transforma-se em necessidade de ter um carro – como se
a indústria e o processo técnico passassem a deter um monopólio
radical sobre as necessidades. A esse processo de inversões
Illich dá o nome de coisificação e afirma inspirar-se em Marx e
Freud: "por coisificação quero significar a consolidação da
percepção das necessidades reais numa procura de produtos
manufaturados de massa. Ou seja, a transferência da sede para a
necessidade de uma Coca-Cola" (ILLICH, 1973c, p. 210). A
"rendição da consciência social às soluções
pré-acondicionadas" se dá na medida em que organizações
burocráticas conseguem dominar a imaginação dos consumidores –
sobretudo pela propaganda.
O
monopólio cria, então, duas alienações: a primeira diz respeito
ao alheamento das necessidades, que passam a ser produzidas
externamente, pelo processo técnico e industrial; a segunda vem do
fato de que só mercadorias produzidas pela indústria serem capazes
de satisfazerem essas necessidades forjadas. Daí a expressão
monopólio radical para designar o duplo controle da indústria e das
instituições sobre a vida humana (criando falsas necessidades e
sendo as únicas a disporem de meios para satisfazê-las).
Illich e o
Transporte
Com
relação à indústria do transporte, Illich argumenta que houve uma
configuração do espaço em função do transporte motorizado,
provocando a extinção das relações humanas e do comércio local,
bem como ocasionando uma dependência do carro para qualquer
deslocamento. "Ao ultrapassar certo limite de velocidade, os
veículos motorizados criam distâncias que só eles conseguem
reduzir" (ILLICH, 1975, p. 48), e quem não dispõe de veículos
motorizados, não consegue se locomover. O carro também reduz a
liberdade de trânsito no sentido que reduz as possibilidades de
destino – quem está a pé pode mudar sua rota, parar onde quiser,
enquanto quem está de carro não pode fazê-lo e tem que seguir
rotas desenhadas especificamente para automóveis.
Além da
geografia, o transporte motorizado também altera o tempo social
quando o aumento do raio de circulação é acompanhado por um maior
dispêndio de tempo com o trânsito. Somando todo o esforço de uma
pessoa para dirigir (tempo de trabalho para comprar o carro e pagar
as contas mais o tempo dirigindo), uma hora seria equivalente ao
trajeto de apenas seis quilômetros. Em países onde não há carros,
uma pessoa também passa uma hora para se deslocar por seis
quilômetros, com a diferença de que gastam apenas 3% da sua vida se
movimentando, contra os 25% gastos em países "motorizados",
calculava Illich (2006c). A transformação da quantidade em
qualidade sobre a qual falava Boaventura de Sousa Santos, diz
respeito, assim, a uma nova forma social na qual a tecnologia se
sobrepõe às relações da humanidade entre si e com a natureza. O
desenvolvimento da indústria, afirma Illich, se dá em detrimento da
plena participação das pessoas, da autonomia dos indivíduos e dos
grupos de base.
Illich e a Medicina
O mesmo
se passa com a medicina: assim como o transporte motorizado implica
imobilidade e escravização da maioria das pessoas ao carro, a
medicina prolonga o tempo da doença e cria novas normas a cada nova
doença descoberta. A esse fenômeno da produção de doenças,
sofrimento e morte pela própria medicina Illich dá o nome de
iatrogênise. Soma-se a isso o encarecimento dos serviços médicos,
cujo efeito é a criação de uma população submissa e dependente,
que ao mesmo tempo que não consegue mais recorrer a seus próprios
meios para a cura, não tem acesso aos serviços médicos (ILLICH,
2006a). Antes, a cultura oferecia mitos, tabus e padrões éticos
para tratar a vida, a doença e as relações sociais. Com a
legitimação da medicina, a dor, a doença e a morte são tratadas
por vias institucionais, de modo que quem não se submeter a esses
mecanismos não consegue mais lidar com a dor e com a morte. Como
destaca Illich, “a promessa do progresso conduz à recusa da
condição humana e à aversão à arte de sofrer” (ILLICH, 1999 s.
p.).
Illich
e a Educação
A
educação é outra dimensão na qual o monopólio radical e a
contrapodutividade se verificam, quando o aprendizado se reduz à
escolarização. O direito a aprender só se realiza pela escola
(ILLICH, 2006d) e, mais do que isso, só por seu intermédio podem
ser formadas as elites dirigentes e profissionais que orientam a
sociedade. Em países pobres, a escolarização é ainda mais
difundida, na medida em que somente pela escola que se obtém um
diploma, o qual é necessário para a inserção na sociedade de
consumidores disciplinados da tecnocracia (ILLICH, 1973d).
Nos
países latino-americanos investiu-se em educação com vistas a
"tirar a maioria não-rural da sua marginalidade nos bairros de
lata e numa agricultura de subsistência e levá-la para o tipo da
fábrica, de mercado e de vida cívica correspondentes à tecnologia
moderna" Embora as aproximações com Bourdieu e seus trabalhos
sobre a escolarização na França sejam muitas, Illich não faz
referências a este e não consta, nos comentários consultados,
qualquer sinal de que tenha existido alguma relação entre ambos
(ILLICH, 1973e, p. 140). Mas concretamente a educação não gerou os
frutos prometidos. Ao contrário, a escola produziu frustração
porque aparece como garantia de integração social, mas não a
realiza porque, na medida em que marginaliza aqueles que não a
seguem, produz uma classe de pobres impotentes, ao lado de uma elite
escolarizada (ILLICH, 2006d). A escolarização, que nasceu para
incorporar as pessoas ao Estado industrial e que serviu para derrubar
o feudalismo, tornou-se um "ídolo opressor" que só
protege aqueles que já foram educados, produzindo desigualdades.
Essa
realidade não é exclusiva de países pobres, assevera Illich. Nos
EUA a educação também é aquilo que designa quais pessoas são
qualificadas ou não. A diferença maior é: enquanto em países
ricos há escola para todos, em países pobres, não há. Mas nestes,
a escola aparece como o único meio de acender à riqueza, de modo
que representa um fardo (ILLICH, 1973e, p. 155). Era o caso de Porto
Rico, que investira 30% de seu orçamento governamental em educação,
mas apenas pequena parcela chegava ao mundo universitário. Nas
palavras de Illich, Porto Rico foi escolarizado, mas não instruído.
Illich
não explica, entretanto, as razões da pobreza e não deixa
explícito se a escolarização, a medicalização e o carro são
produto de uma desigualdade a priori ou se as instituições operam
de forma contraditória produzindo desigualdades entre aqueles que a
consomem e aqueles não o fazem. Na maior parte dos textos, a
impressão que se tem é que as desigualdades estão dadas de
antemão, já que, ao menos nos países pobres, o acesso às
instituições pressupõe a posse de dinheiro e muitas são as
pessoas que não conseguem fazer parte delas. Essa questão não é
respondida porque Illich está mais preocupado com a “oposição
que se situa primeiro entre os homens e a estrutura técnica da
ferramenta e, logo, como consequência, entre o homem e as profissões
cujo interesse consiste em manter a estrutura técnica” do que com
“a oposição entre uma classe de homens explorados e outra classe
proprietária das ferramentas” (ILLICH, 2006a, p. 468).
Ao
tentar contornar a questão das classes, Illich oscila entre duas
explicações. Ora é o sistema que cria as desigualdades, ora ele se
impõe a uma realidade já cindida. Os diplomas criam uma
diferenciação social, mas essa diferenciação só se dá a partir
de uma diferença anterior: os que tiveram e os que não tiveram
acesso ao ensino formal, conseguiram diplomas e tiveram acesso a bons
empregos. Com os carros, passa-se uma ambiguidade semelhante. Illich
afirma que o automóvel nasceu como produto de luxo, o que quer dizer
que existem ricos e pobres antes que o trânsito se transforme em
espaço exclusivo de veículos motorizados. E uma vez que isso
ocorre, os transportes criam uma desigualdade social entre os que têm
e os que não têm carro, mas Illich não incorpora essa questão em
seus trabalhos.
Este
texto foi extraído da dissertação:
BÁDUE,
Ana Flávia P. L. A
nebulosa do decrescimento. Um estudo sobre as contradições das
novas formas de fazer política.
181p. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia
da Universidade de São Paulo, 2012.
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